Kanonenfieber (SP)
Texto por: Heitor Lamana
Fotos por: Raíssa Corrêa (@showww360)
Agradecimentos: Tedesco Mídia, Overload e CKC Concerts
O passado sempre foi um tema recorrente dentro do metal. Da New Wave of British Heavy Metal ao épico e fantasioso power metal, inúmeras bandas utilizam grandes acontecimentos e figuras históricas como pano de fundo lírico e temático para suas melodias. Por vezes, esse fascínio chega a moldar inclusive a estética visual das mesmas, cruzando os limites do processo criativo e chegando diretamente à performance nos palcos.
No entanto, o que para muitos é apenas uma mera abstração do cotidiano costuma esbarrar inevitavelmente em alguns problemas. Ao trabalhar narrativas de épocas distantes com uma visão histórica semelhante à da já superada historiografia positivista do século XIX, o metal por vezes cai na velha armadilha da idealização romântica do passado, celebrando grandes personagens e conflitos em um tom pastiche, sem muito senso crítico.
Em tempos onde a geopolítica se esqueceu novamente do preço em vidas cobrado pela guerra, correr de um lado para o outro no palco exaltando batalhas militares pretéritas e cantando seus nomes como um mantra não me parece uma ideia sensata. É claro que existe a licença poética e a atmosfera planejada pelos artistas, mas tudo isso é possível sem soar como um propagandista militar passando pela TV.
É na contramão dessa tendência que o
Kanonenfieber se destaca. O projeto anônimo de black metal, formado na Alemanha pelo vocalista e fundador
Noise, surge com a premissa de abordar os horrores da Primeira Guerra Mundial por meio de relatos e documentos de combatentes sem, no entanto, glorificar o conflito. Essa abordagem se manifesta não apenas nas letras, mas também na sonoridade da banda, que busca demonstrar a adrenalina, ansiedade e o caos vividos pelos soldados no front de batalha, convidando o ouvinte a refletir sobre a brutalidade e o desperdício da vida humana.
A escolha do tema é certeira. Segundo o historiador francês Marc Ferro em seu livro ‘A Grande Guerra: 1914-1918’, a Primeira Guerra Mundial foi o resultado de tensões que trucidaram com o sonho de milhares de jovens, que esperavam retornar em breve para suas casas carregando láureas, mas que foram recebidos com a morte — uma geração inteira perdida (visão muito diferente da imagem que certos artistas passam).
Toda essa proposta conceitual foi materializada à risca pelo
Kanonenfieber no último domingo, dia 7, no palco do
Carioca Club. Iniciando sua apresentação por volta do horário previsto, próximo às 20h, pouco a pouco os músicos foram dando as caras ao público enquanto a intro de
‘Menschenmühle’ era tocada. Após um breve estampido da bateria, a serena abertura foi derrubada por uma enxurrada sonora vinda de todos os lados, momento em que
Noise precipitou-se à audiência esgoelando frases de ordem no seu microfone.
Gesticulando a cada frase com uma precisão marcial — tal qual um oficial aterrorizando recrutas —, o vocalista
Noise trajava o conhecido uniforme cinza-verde da Alemanha e o belíssimo e imponente
Pickelhaube (capacete pontiagudo que se tornou símbolo do militarismo alemão, popularizado pela Prússia).
Diferentemente do que se possa imaginar, o uso de máscaras por parte dos músicos não diminuiu sua expressividade no palco e, pelo contrário, realçou a proposta do grupo ao apresentarem-se como vítimas esquecidas pela memória e enterradas em consequência das ordens dos grandes estadistas. Continuaram a apresentação, logo em seguida, com a música
‘Sturmtrupp’, uma rajada igualmente performática e marcante.
Um fato curioso que chamou atenção ao longo de todo o show foi a facilidade com que o público acompanhou as letras das músicas, todas em alemão. O engajamento foi tamanho que todos pareciam ter saído diretamente de algum estado germânico (quem sabe a Baviera, terra natal da banda). Foi nesse contexto que as emocionantes ‘Der Füsilier I’ e sua continuação ‘Der Füsilier II’ foram executadas lindamente, combinando com o drama de seus versos.
O palco era todo atravessado por arame farpado e sacos de areia, simulando bem uma trincheira. Após um breve intervalo, a grande ‘Der Maulwurf’ entrou em cena e as luzes se acenderam em tons quentes. Interpretando as chamadas ‘toupeiras’ — soldados que trabalhavam e se sacrificavam como mineiros nas linhas de frente —, os músicos vestiam camisetas sem mangas e suspensórios, atuação ainda mais fidedigna graças ao calor insuportável que fazia naquela hora. O refrão, grave e pegajoso, fez com que todos participassem, de uma maneira ou de outra, com uma sincronia perfeita, como se estivessem cavando um túnel. Por fim, finalizaram a escaramuça terrestre com o blindado riff de
‘Panzerhenker’.
Depois de uma pausa para se vestir, o esquadrão retornou vestindo fardas de marinheiro, com o destaque indo para o sobretudo e chapéu escuros de
Noise, adornados com detalhes dourados. Acelerando o ritmo, a campanha mudou para o mar ao som dos radares de ‘Kampf Und Sturm’, em mais um perfeito exemplo de sincronia e coordenação do conjunto. Outro ponto alto da noite foi a frenética
‘Z-Vor’, que desembocou nos brados de ‘Ahoy’ em ‘Die Havarie’, fechando mais um capítulo da incursão.
Voltando ao primeiro uniforme, era chegada a hora do grand finale. Em uma cena fraterna e genuinamente bonita, Noise e o baixista Gunnar se abraçaram antes de inverterem os papéis em ‘Waffenbruder’ — com certeza a única parte não coreografada do show—, dando ênfase à mensagem de irmandade da música.
Para concluir, selaram o setlist com
‘Ausblutungsschlacht’, faixa sobre a batalha de Verdun, a mais longa da Primeira Guerra Mundial. Portando sua característica máscara de caveira,
Noise
encarnou a morte em um lembrete da realidade do mal causado pela guerra, enquanto o vocal rasgado de
Gunnar serviu como nota da agonia e do fator humano ali presente, no que foi a faixa mais crua e catártica da noite.
Em sua primeira aparição pelo Brasil, o
Kanonenfieber entregou tudo e mais um pouco em uma apresentação para além de formidável, repleta de teatralidade e significado. Cativando uma audiência relativamente grande no
Carioca Club, a banda não apenas garantiu seu futuro retorno, como também conquistou uma proeza rara para bandas de black metal: disputar espaço com ninguém menos que os veteranos do
Mayhem, que se apresentaram no mesmo dia na
V.I.P Station — uma baita medalha de honra.
Kanonenfieber - setlist:
- Menschenmühle
- Sturmtrupp
- Der Füsilier I
- Der Füsilier II
- Grabenlieder
- Der Maulwurf
- Panzerhenker
- Kampf und Sturm
- Z-Vor!
- Die Havarie
- Die Feuertaufe
- Waffenbrüder
- Verdun - Ausblutungsschlacht










