Cobertura: Crypta (SP)

Texto por: Daniel Agapito (Chato de Show) - @dhpito

Fotos por: Nanda Arantes - @nanda_arantes


Que o Brasil é e sempre foi o berço de diversos nomes interessantíssimos da música pesada todos sabemos, bandas como o Ratos de Porão, Kirisun, Sarcófago, até nomes mais “nichados” como o Rot  e o Olho Seco tiveram uma influência inenarrável em suas respectivas cenas underground, mas no final do dia, quando vamos falar de bandas realmente grandes, dois nomes sempre tomam a frente da discussão: Angra  e Sepultura. No ano passado, nós headbangers tupiniquins fomos colocados em um cenário interessante, ambas as bandas anunciaram turnês de despedida (no caso dos gigantes do power metal foi considerado uma pausa, mas há quem diga o mesmo do Sepultura), o que levantou a seguinte questão: quem irá os “substituir”? Coloco substituir em aspas porque nenhuma banda, especialmente do nível de influência das duas consegue ser realmente substituída, mas a ideia segue a mesma. A banda que mais tem sido mencionada nesse contexto tem sido a Crypta, que tem feito um belo barulho (literalmente) pelo mundo com seu death metal impiedoso, mas o mesmo motivo que as diferenciou logo de cara, tem sido algo que a mídia - especialmente os “rockeiros tradicionais” - tem usado de demérito para a banda, são mulheres.

 

Esta foi, inclusive, uma das pautas de sua turnê atual, a “In the Other Side Brasil Tour”, trazer justamente outras bandas com mulheres à frente, sendo elas o Hatefulmurder, com a poderosa Giulia Roiz encabeçando sua nova formação, os veteranos do black metal sinfônico Paradise In Flames, que contam com Nienna Ni  trazendo um glamour diferenciado para toda a brutalidade e o Allenkey, cuja voz principal é de Karina Menascé, banda que tem de um jeito ou de outro se tornado figura conhecida na cena paulista, fazendo a abertura dos shows de diversos artistas internacionais. Antes da data que fariam em São Paulo, no dia 20/7, no VIP Station, tudo parecia bem, até que uma declaração de Jairo Guedz, do The Troops of Doom em um podcast, falando sobre uma “experiência traumática” que ele havia vivido com uma “banda brasileira” (cujo nome não foi revelado pelo próprio) foi associada à Crypta de imediato. Como já havia rolado com elas em várias outras ocasiões, a cena se dividiu perante a polêmica, e analisá-la e escolher lados foge do escopo desta matéria, mas não havia como falar deste show sem antes apresentar este contexto.

Crypta

Poucos dias antes do evento em si, que originalmente contava apenas com a Crypta, Allenkey e Paradise in Flames, mais duas bandas foram adicionadas ao cast, a School of Rock e uma banda surpresa, posteriormente revelada como os cearenses do Caixão, que estavam fazendo uma gira breve por São Paulo, tendo passado pelo Devil’s Pub em Sorocaba na sexta-feira anterior (18/8) e pelo SESC Belenzinho no sábado.

 

Para manter a transparência, este que vos escreve infelizmente não conseguiu chegar para ver a School tocar por conta do trânsito paulista, mas por meio de vídeos do show e conversando com espectadores que os assistiram, consigo oferecer uma visão breve. A apresentação em si foi breve, e a casa estava longe de cheia quando subiram no palco, mas seu setlist recheado de clássicos conseguiu animar quem estava lá. A unidade de Moema, por exemplo, executou Wasted Years, clássica dos barzinhos de rock, uma versão com vocais femininos da já clássica Rebirth, do Angra, e até mostraram suas habilidades nas faixas mais pesadas com um cover do Roots, do Sepultura, onde os vocais ficaram a cargo do Matias Aguiar, que tem mais voz atualmente do que o próprio Max Cavalera. Não foi apenas ela que tocou, pois uma outra unidade também subiu no palco para mostrar ao público sucessos que iam do System of a Down ao Iron Maiden.

Crypta

O som do Caixão, a atração surpresa inserida de última hora, apesar de ser de uma qualidade que não pode ser ignorada, foi uma bela surpresa para os fãs das headliners, visto que não tem completamente nada a ver com elas. É até difícil de descrevê-los, mas mesclam um proto-metal à lá Black Sabbath, aquele cheirinho de doom, com uma bela dose de psicodelia e música progressiva dos anos 70 - uma baita viagem. Com aproximadamente meia-hora de tempo de palco, conseguiram apresentar um repertório de 8 faixas, majoritariamente focado em seu último lançamento, o brilhante Entre O Velho Tempo Futuro (2024), valendo mencionar a sinistra Luz estranha em Quixadá, Bloodstains, uma das poucas faixas que contam com vocais e já de seu outro álbum, Da Porta ao Sumiço (2020), Vulto, que fechou a apresentação.

Caixão

A primeira das bandas originalmente anunciadas a subir no palco foi a Allenkey, que fez um show até bem diferente do que geralmente fazem. Isso se deu por conta não só dos sons do próximo álbum, que haviam sido testados ao longo desta perna da turnê, mas também por conta das trocas de formação que ocorreram na banda durante o ano passado, que acabou trazendo uma energia diferente para o grupo. Já dando uma ideia de como será o próximo álbum, o single Get in Line, que expande na sonoridade do grupo, que mescla um hard rock com o metal moderno, já está disponível nas plataformas de streaming. Vale ressaltar também não só a voz da Karina, como também sua presença de palco, que aproveitou o fato da casa ainda não estar cheia para dar à apresentação um clima mais intimista, que parecia uma conversa entre amigos. Por exemplo, para abrir a primeira roda da noite, ela pediu para que os presentes “abrissem um corredor e se matassem”, que conseguiu tirar algumas risadas de uma galera que até então estava tão calorosa quanto uma pequena cidade no norte da Sibéria.

Allen Key

Quem já ouviu o som do Paradise in Flames sabe que é algo bastante complexo, bastante técnico, que parece ser difícil de transmitir no contexto ao vivo, mas mais uma vez, provaram que são mais do que capazes de fazerem isso, conseguindo trazer todo o espetáculo e grandiosidade de uma banda de metal sinfônico, mas sem perder a brutalidade e visceralidade que é esperada do black metal, tanto em termos de som quanto em relação à presença de palco. Assim como seu último show no VIP Station, abrindo para o então Batushka, em agosto do ano passado, o som começou um pouco embolado, especialmente o microfone de Nienna Ni, mas os técnicos de som foram rápidos para resolver o ocorrido. Seu setlist trouxe músicas de todas as épocas, mas deu mais luz - esperadamente - às mais recentes, especialmente os discos Blindness (2024) e Act One (2021). Um momento que acabou se tornando uma dos mais memoráveis da noite não aconteceu no palco, mas sim na pista, quando dois fãs fizeram uma tentativa de roda, mas que não foi abraçado pelo resto, e quando ninguém entrou junto, o espectador que havia começado o movimento gritou, bem na pausa da música que estava rolando: “o metal morreu mesmo”!

Paradise in Flames

A constatação daquele fã rapidamente foi refutada, quando o público foi à loucura ao ver que Luana Dametto (baterista do Crytpa) havia apenas subido no palco para terminar de passar o som. Foi algo incrivelmente rápido, coisa de dois minutos, com uns 20 ainda faltando para o início do show, mas as celebrações na pista faziam parecer que o Brasil havia acabado de ganhar a copa. O show, propriamente dito, só teve seu início perto das 21:00, ao som de The Aftermath, introdução do Shades of Sorrow (2023) tocando pelo sistema de alto-falantes. Agora com a casa já bem mais cheia - não chegou a lotar, ainda era possível andar relativamente tranquilo por lá, mas estimaria que 70% da capacidade (que no formato em que estava sendo usado, com apenas o palco principal, passa das 2 mil pessoas, bastante coisa, considerando que haviam tocado no Cine Joia, para 800 pessoas em dezembro) estava ocupada - começaram com guitarras limpas e dois pés na porta, logo com The Other Side of Anger. Uma roda de tamanho considerável (bem maior do que qualquer outra da noite) já aparecia no meio da pista desde o primeiro momento, e algo ficou bem óbvio, quem estava lá, estava lá para ver Crypta.

 

Atendendo aos pedidos de vários fãs, uma virada estonteante soou pela casa, uma virada que não fazia parte dos setlists da banda há mais de um ano, a virada de Kali, um dos grandes destaques de Echoes of the Soul (2021). Voltaram ao Shades com Lift the Blindfold, lado B reto e direto, sem frescura, algo que foi refletido por uma fala de Fernanda Lira no final da música, que também acabou sendo o mais perto que chegamos de um pronunciamento em relação à polêmica: “boa noite São Paulo, estamos aqui para tocar death metal nessa porra”. Trazendo mais death metal para aquela porra, veio The Outsider, que começa mais devagar, daquelas para bater cabeça com o corpo todo e travar as costas. 

Crypta

Tirando Possessed (que assim como a banda de death metal do mesmo nome, amedronta crianças), o resto da primeira metade do show foi composto por faixas do segundo álbum, sendo elas Lullaby for the Forsaken, que contou com uma pequena introdução pelo PA e a mais longa Stronghold, que chega até a flertar levemente com um pouco de progressividade. Passado pouco mais de meia hora, o meio do show foi marcado por mais uma faixa pelos alto-falantes, a ominosa The Limbo, introdução justamente da joia da coroa de Shades of Sorrow, Trial of Traitors, segundo single do álbum. Mostrando a verdadeira devoção dos fãs à banda, o riff do meio da música foi cantado a plenos pulmões pelo público, em uma só voz, um momento até bem bonito para um show de metal extremo.

 

Depois de Under the Black Wings, Fernanda aproveitou para dialogar um pouco com aqueles que estavam lá: “vocês estão animadíssimos para um domingo, né? Vocês perceberam que esse setlist é para vocês, perceberam que tem um monte de música que a gente não tocava há mó tempo? A gente pensou, como a gente não é nada sem eles, vamos tocar, por isso que tocamos Kali, e por isso que vamos tocar a próxima, Starvation.” Tendo passado um tempo longe dos palcos desde praticamente os primeiros shows do agora não tão novo álbum, a reação geral quando Luana deu aquelas 4 batidas na caixa foi para lá de estrondosa. Falando em reações estrondosas, a energia seria mantida lá no alto com Shadow Within, também do primeiro álbum, uma verdadeira aula de técnica das 4 integrantes. Aliás, ficam aqui meus parabéns para a Helena Nagagata, guitarrista que está assumindo as 6 cordas ao lado da Tainá Bergamaschi nesta turnê. Todos sabiam que não ia ser fácil substituir a Jessica di Falchi, mas a Helena não ficou devendo nada…

Crypta

Para fechar, empregaram uma trinca de músicas pesadíssimas, começando com Dark Clouds, cuja ponte calma foi um dos raros momentos dos últimos minutos em que dava para respirar. Impressionada com a reação do público, a própria vocalista chegou a constatar: “tem umas que vocês estão cantando até melhor que eu”. Um exemplo de uma música assim foi Lord of Ruins, primeiro single do último álbum, que teve seu refrão gritado em uníssono, parecia uma missa de domingo mesmo, mas que daria medo naqueles que frequentam a missa de domingo. Para fechar com chave de ouro e um belo soco na cara, From the Ashes, que transformou a roda em algo muito mais que uma roda, um verdadeiro liquidificador, um vórtice humano em sentido anti-horário incontrolável. Foi com uma pedrada daquelas que o show chegou ao fim, com The Closure sendo a trilha dos últimos agradecimentos.

 

Como um todo, o público não foi dos maiores naquela noite, e podemos ficar especulando as razões para isso infinitamente, seria o show ser em um domingo, em uma casa de show longe da maioria do público do metal? Seria pela polêmica que havia estourado nos dias anteriores? Seria o VIP Station, casa relativamente grande, um passo maior que as pernas para a banda? Aquele fã estava certo e o metal morreu? Nunca saberemos ao certo (bom, sabemos que esta última está longe de ser verdade), mas uma coisa é certeza, mostraram que sabem fazer um show de qualidade, e que em termos de técnica e presença, são mais do que capazes de carregar a tocha da cena nacional no futuro.

Crypta

Setlist Crypta:


The Aftermath*

1. The Other Side of Anger

2. Kali

3. Lift the Blindfold

4. The Outsider

5. Possessed

6. Lullaby for the Forsaken

7. Stronghold

The Limbo*

8. Trial of Traitors

9. Under the Black Wings

10. Starvation

11. Shadow Within

12. Dark Clouds

13. Lord of Ruins

14. From the Ashes

The Closure*

 

*pelo sistema de PA