Birushanah (SP)
Texto por: Pedro Delgado (Rato de Show) - @ratodeshow
Fotos por: Daniel Agapito (Chato de Show) - @dhpito
Agradecimentos: João Kombi e Festival Novas Frequências
Mesmo em um mundo globalizado, onde a troca cultural pode ser plural e diversa, a existência de hegemonias de costumes e narrativas construiu com o tempo noções que, mesmo na era da internet, ainda parecem gerar barreiras e limitar o campo de visão.
Um bom exemplo disso está na Ásia. Culturas milenares, riquíssimas em todo tipo de produção, do conhecimento à tecnologia e à arte, mas que muitas vezes acabam reduzidas a estereótipos simplistas. O Japão vira sinônimo de animes e bons modos, a Índia de caos, pobreza e Bollywood, enquanto a China é resumida a comunismo e carros elétricos, e a Coreia fica dividida entre ditadura e K-pop.
Se te parecer exagero, retorno com o questionamento: qual foi o último filme asiático que você assistiu, ou o último artista do continente que entrou na sua playlist? Para além da grande exportação da música coreana, que de fato se tornou um “case” de sucesso, talvez muito mais pelo seu enfoque comercial, o único outro movimento de maior impacto que consigo lembrar, falando especificamente de música, é a subcultura do visual kei e das bandas de J-rock que invadiram o Ocidente por volta de 2005.
Pensar em gêneros musicais e associá-los imediatamente a artistas asiáticos é, sim, uma tarefa hercúlea, seja pela assimilação quase total da cultura americana no Ocidente, seja pelo distanciamento histórico com o Oriente que ainda persiste até hoje. Mas isso não significa que não existam movimentos empenhados em estreitar esses laços, como o
Festival Novas Frequências, que no último dia 09 de dezembro veio pela primeira vez a São Paulo mediando também um contato com a Terra do Sol Nascente.
Focado e referência em música experimental, arte sonora e pesquisa de som na América Latina, o evento promove uma curadoria cirúrgica no que tange à música performática, chegando a sua 15ª edição neste ano.
Por meio do festival, tivemos a oportunidade de conhecer o Birushanah, banda experimental diretamente de Osaka que, desde 2002, vem produzindo um ruído sonoro afiado e metódico, misturando instrumentos típicos, improvisação e teatralidade com bons “quês” de sludge e doom metal, tornando a proposta surpreendentemente palatável.
Tendo o SESC Avenida Paulista como palco, o trio formado por Seiji Iso (guitarra e vocal), Ao Asako (baixo) e Atsushi Sano (bateria) subiu no horário programado apenas para se deparar logo de cara com um desafio técnico envolvendo o baixo de Asako. Após alguns minutos de incômodo e ajustes, o problema foi resolvido, e, com as salvas da plateia, a banda parecia animada o suficiente para entregar uma das performances mais distintas do calendário.
Enquanto audiência, livres das amarras da letra ou da linguística, fosse pelas músicas instrumentais ou pelo conhecimento empobrecido de japonês deste que vos fala, tornava-se extremamente convidativo interpretar cada música a partir de sua massa sonora, da movimentação corporal e de toda a ambientação criada em palco.
Iso tinha a voz frequentemente abafada pelos outros instrumentos, fosse pelo grave potente do baixo de Asako, fosse pelas batidas ora rítmicas, ora caóticas de Sano, que transitavam entre uma bateria “convencional” e partes modificadas, com panelas, materiais metalizados e elementos típicos. Até mesmo as baquetas remetiam mais às de taiko do que às tradicionais de bateria. Somados aos riffs de Iso, a cacofonia do Birushanah era simplesmente hipnotizante, potencializada ainda pelo jogo de luzes.
O público, por sua vez, respondia bem. Entre aqueles que batiam cabeça, os que aplaudiam e os que tentavam compreender, ou melhor, sentir o que a performance despertava, era evidente que a curiosidade só crescia. Fosse pela tensão sonora, fosse pelas mudanças rítmicas que iam do mais calmo ao mais revigorante, o fato é que toda interpretação carregava consigo um certo incômodo. E não do tipo ruim.
Nas expressões e nos timbres, parecia haver uma urgência no som do trio, como se denunciasse suas próprias realidades, frustrações ou desejos, tudo isso envolto em uma camada extremamente dramática e teatral.
Nas pausas entre as músicas,
Sano, misturando português, inglês e japonês, fazia questão de agradecer e se certificar de que o público estava feliz e se divertindo. Comentou também sobre a alegria de estarem no Brasil e ainda fez um jabá do stand de merchandising, que, adianto, mal teve tempo de respirar antes de várias peças se esgotarem.
O trio passeou por diferentes fases de seus cinco álbuns de estúdio, com músicas como Jintekiyokkyu, Sea Breeze ni Fubuki Karete, Shakuhachi e Mabutairo no Tabibito, esta última presente em Makyo (2017), único álbum disponível no Spotify, cujo título pode ser traduzido como “reino demoníaco”.
Mas talvez o momento mais hipnotizante tenha acontecido na última música da noite, de nome desconhecido. Antes de seu início, Asako soprou um instrumento pouco usual, enquanto Iso empunhava uma daquelas flautas longas e delicadas, trazendo ao palco uma atmosfera oriental quase contemplativa. Era poético observar uma sonoridade tradicional de uma cultura frequentemente associada à disciplina e à ordem se misturando ao mais puro caos sonoro, com tempos quebrados e berros que transmitiam um sentimento claríssimo ao espectador, mesmo através de uma língua tão distante da nossa.
Provando que, por meio da expressão artística, neste caso da música, as barreiras da linguagem se dissolvem e que as muletas do inglês não são necessárias, a passagem do Birushanah reforça a importância desse ponto de contato com o Oriente, algo que ainda precisa ser muito trabalhado. Caminhamos, quem sabe, para um futuro em que o deslumbre pela arte deixe de soar como curiosidade pelo estranhamento e passe a ser apenas empolgação pela naturalização.
Até lá, trocas culturais como essa são mais do que bem-vindas, especialmente quando se pode observar figuras como membros da Papangu, expoente experimentalista nordestino, absorvendo essa conexão e tecendo, nos próprios olhares, novas ideias.
Um salve ao
Festival Novas Frequências e ao trabalho ímpar na perpetuação desse movimento que, a julgar pela recepção do público, também merece fazer de São Paulo um ponto recorrente de retorno.
Setlist
- Jintekiyokkyu
- Sea Breeze Nibuki Karete
- (Desconhecido)
- (Desconhecido)
- Mabutairo no Tabibito
- Shakuhachi
- (Desconhecido)
- (Desconhecido)
- (Desconhecido)










