Atrocity, Arkona e Leave's Eyes (SP)

Texto por: Heitor Lamana

Fotos por: Edu Lawless

Agradecimentos: Estética Torta, Acesso Music

Agradecimentos especiais a Road to Metal pela parceria e concessão de imagens.


Por vezes, as coisas não saem como esperado e as intempéries da vida batem à nossa porta para nos dar um oi. É em momentos como esses, em que as circunstâncias escapam do nosso controle, que o improviso surge como instrumento para lidar com as vicissitudes. Quase sempre, isso acaba rendendo boas memórias, seja de um susto levado em retrospecto ou de situações inusuais que se tornam cômicas.


No último domingo, dia 23, no palco do Carioca Club em São Paulo, os membros das bandas Atrocity, Arkona e Leaves’ Eyes foram surpreendidos e tiveram de lidar com uma dessas situações. Com a casa muito aquém de sua capacidade máxima, o que causou um certo clima de espanto, os músicos precisaram “se virar nos 30” para contornar esse obstáculo e, assim, proporcionar uma noite marcante aos presentes. Os que compareceram foram brindados com apresentações de altíssimo nível em um espetáculo único e intimista, que sem dúvida alguma ficará marcado na memória.


O evento estava originalmente programado para começar às 18h, mas só teve início cerca de 17 minutos depois, quando o Atrocity fez sua entrada. Formado em 1985, na Alemanha, sob o nome de Instigators (época em que tocavam grindcore), o grupo é conhecido por já ter percorrido todo um mosaico de estilos ao longo de seus 40 anos de carreira. Embora tenham se consagrado no death metal e seus subgêneros, sua discografia inclui passagens pelo metal industrial, sinfônico, folk e até mesmo gótico — uma versatilidade que chegou a culminar em dois controversos álbuns de covers dos anos 80.


Portando pedestais adornados com o logo da banda e os rostos pintados com maquiagens sombrias, os músicos subiram ao palco com a violenta ‘Desecration of God’, impressionando a todos que estavam no local. A formação ali presente era composta pelo fundador e líder Alexander Krull nos vocais, acompanhado dos guitarristas Florian Ewert e Luc Gebhardt, bem como do baterista esloveno Simon Škrlec, novato no grupo.

atrocity  em SP

Com um death metal encadeado e brutal, a performance do Atrocity foi exuberante. O carisma do frontman Alexander Krull é lendário, a todo instante se movimentando pelo espaço e interagindo com a plateia. Em gestos que beiravam o ritualístico, o vocalista apoiava o pedestal no joelho, parecendo uma espécie de hierofanta do oculto congregando para uma seita apocalíptica. Falando em carisma, a dupla de guitarristas Luc e Florian – que, diga-se de passagem, possuem um entrosamento gigantesco com o restante do time – não ficaram para trás, estraçalhando suas guitarras e constantemente se curvando à beira do palco para interagir, incentivando os fãs a formarem as humildes, mas pesadas rodas da noite.


Outro destaque da abertura foi a barragem torrencial do recruta do grupo, Simon, em sua bateria. Com um bombardeio interminável — daqueles que você sente no corpo e sai mais leve do que depois de uma sessão de shiatsu —, o baterista trouxe brutalidade e potência ao que já era pesado em faixas como ‘Faces from Beyond’ e ‘Bleeding for Blasphemy’.


Em dado momento do set, Krull gravou um vídeo com a plateia para mandar para seu filho e chegou a comparar o público brasileiro com o público do Wacken Open Air, o famoso festival alemão. Para selar a noite, dedicaram a faixa ‘Reich of Phenomena’ ao Brasil e terminaram seu empolgante set de abertura, elevando o clima e a expectativa para as demais apresentações da noite.

atrocity em SP

Exatas uma hora desde o começo do ritual do Atrocity, era a vez dos moscovitas do Arkona, os mais aguardados pelos presentes. Batizada em homenagem à lendária fortaleza pagã eslava destruída em 1168 no Cabo Arkona (atual Alemanha), a banda se tornou célebre por sua mistura de elementos musicais e temáticas do leste europeu com o metal extremo.


Para quem esperava pelas músicas mais festivas voltadas para o folk metal, uma surpresa; as três primeiras faixas do mais recente trabalho do grupo sinalizavam a vinda de uma apresentação muito mais atmosférica e densa. Lançado em 16 de junho de 2023 pela Napalm Records, Kob’ cuja tradução literal é ‘feitiço’, mas cujo significado remete a desastre, azar ou augúrio trabalha como tema a derrocada da humanidade, envolta em guerras e separando-se da natureza, e, sendo assim, explora todo o lado obscuro da mesma, com uma sonoridade muito mais pesada e caótica do que os álbuns anteriores. Consequentemente, a longa intro de 4 minutos ‘Izrechenie. Nachalo’, junto da homônima ‘Kob’’ e de ‘Ydi’ despejaram na audiência todo o caos e melancolia prometidos pelo disco, com uma violência destoante da apresentação anterior.


A grande estrela da formação é sem sombra de dúvidas a vocalista e fundadora Masha ‘Scream’ Archipova. Transitando entre vocais limpos e guturais (e vice-versa) com uma facilidade desumana — ao mesmo tempo em que entrega uma extraordinária interpretação — a vocalista tem uma presença de palco simplesmente hipnotizante e ativa. Acompanhada de Alexander Smirnov (bateria), Sergey Lazar (guitarra) e Ruslan Kniaz (baixo), a dramaticidade do Arkona dominou a audiência, que mergulhou a fundo na proposta do grupo muito embora o tom do espetáculo fosse mais lento. Em dado momento, um fã estendeu e entregou uma bandeira da Rússia aos artistas, prontamente aceita e guardada por eles. 

arkona  em SP

Há uma melancolia peculiar e uma maneira de se contemplar a natureza — em seus aspectos mais crus e mórbidos — que só bandas do leste europeu como o Arkona conseguem captar. Essa mística, talvez proveniente da literatura russa ou mesmo da imponência das taigas e da vastidão dos ermos siberianos, enaltece a abordagem da banda ao garantir a imersão completa do público por meio de um lirismo profundo e autêntico. ‘Yav’ e ‘Goi, Rode Goi!’ — a mais famosa tocada naquele fatídico domingo — são exemplos de sucesso dessa expressividade e teatralidade,  pontos altos da noite.


Curiosamente, a banda manteve uma postura reservada, gerando estranheza, e a primeira interação direta com a plateia só se deu no final do show, quando Masha anunciou a música ‘Zimushka’ (palavra que significa inverno, em um sentido diminuto de carinho), agradecendo a presença de todos antes de iniciar a emocionante canção com um carregado ‘Obrigado, São Paulo!’. Ainda em relação ao distanciamento do Arkona, outro acontecimento intrigante que deu no que falar foi a ausência de merchandising da banda que, por algum motivo, nem mesmo trouxe consigo itens para a turnê (para a tristeza de muitos fãs que estavam ávidos por comprar após aquela fenomenal apresentação). Não havia nem mesmo um setlist no palco.


Essas atitudes, somadas à postura contida, embora seja parte da atmosfera planejada, refletem a precária integração entre o mundo oriental com o Brasil. A crise de identidade que afeta tanto russos — nas margens do mundo ocidental e oriental — e brasileiros — que se enxergam mais ocidentais do que latinos — é extremamente danosa e infrutífera uma vez que não conseguimos trabalhar nossas similaridades e aprendermos mutuamente, o que em nosso nichado meio se torna ainda mais prejudicial e separador ao não promover conexão.

arkona em SP

Depois de uma viagem melancólica e visceral pelo paganismo eslavo, a incursão que iria fechar a noite era épica, digna das sagas viking. Os co-headliners do Leaves’ Eyes entraram em cena com a épica ‘Chains of the Golden Horn’. Ali, a maioria descobriu então a razão pela qual o Arkona não estava fechando a noite (o que foi bastante comentado no intervalo entre os shows); se tratavam dos mesmos músicos da primeira banda. Com exceção da vocalista, a finlandesa Elina Siirala, todos os outros integrantes também atuavam no Atrocity. Para os fãs mais antigos, essa dupla jornada de trabalho não era novidade; em 2006, o Atrocity e o Leaves’ Eyes tocaram um seguido do outro em abertura para ninguém menos que o Destruction, na finada casa de shows Via Funchal.


De cara lavada (e dessa vez com calças costuradas), Alexander, Florian, Luc e Simon vieram à tona com outro semblante; a brutalidade e o ódio ficaram para trás e agora era hora de aventura. Isso se refletiu imediatamente no som, que era drasticamente diferente das performances anteriores. Com um metal sinfônico de se dançar velejando para o horizonte, a banda tocou logo adiante ‘Hammer of the Gods’ e a belíssima ‘Across the Sea’.

 

O contraste do dueto Elina e Krull segue aquele clássico modelo consagrado no metal sinfônico em bandas como Nightwish, Epica e Delain. Se no Atrocity o carisma de Krull era um ponto alto, agora no Leaves’ Eyes ele dividia a atenção com a energia e o sorriso vibrante de Elina.  A liberdade proporcionada pelo som mais épico e alegre fazia também com que a dupla de guitarristas Luc e Florian pudessem transitar com maior liberdade pelo espaço, pulando e brincando em meio às músicas. O show ainda contou com uma fantasia de guerreiro viking trajada por Krull, indumentária esta que incluía um capacete e uma espada aparentemente de aço.

leave's eye no brasil

Anunciaram uma música inédita para o público latino-americano, ainda não lançada, de nome ‘Song of Darkness’. Pouco depois, chegou a hora do clássico ‘My Destiny’, nostálgico e belo. Em seguida, ocorreu um dos momentos mais surreais e hilários que já vivenciei em um show; com um faro apurado para agradar os fãs e uma sacada genial, o vocalista Alexander Krull anunciou que a banda iria distribuir cachaça — também conhecida como pinga, aguardente, caninha, branquinha, marvada, tira-juízo e água que passarinho não bebe — para os que estavam presentes, em copinhos descartáveis de café. Posso dar meu testemunho de quem conseguiu saborear a iguaria de que não só era verdade como também foi um baita de um sucesso, levando os fãs (incluindo eu) à histeria coletiva até o final. 


Após a bebedeira que serviu de prelúdio para ‘Swords in Rock’, a banda atacou com outro clássico, ‘Hell to the Heavens’, que incendiou a plateia mais do que um trio elétrico no meio do carnaval de Salvador. Com a energia no máximo, o Leaves' Eyes iniciou o desfecho de sua apresentação: uma solene ode aos caídos em batalha com a enlutada ‘Farewell Proud Men’, sucedida de forma heróica com ‘Forged In Fire’. Despedindo-se daquela abrasada audiência, a banda prometeu um último encontro na noite, avisando que estariam presentes na banca de merchandising para cumprimentar pessoalmente a todos.


Três bandas, três estilos e uma pequena audiência no contexto de uma elevada quantidade de eventos na cidade de São Paulo. Foi com essa conjuntura que Atrocity, Arkona e Leaves’ Eyes tiveram de trabalhar sem perder o gingado. Com muita tenacidade e um pequeno apelo à boemia brasileira, as bandas acataram a sabedoria popular e fizeram de alguns limões uma limonada, matando a sede de seus ouvintes em uma memoriosa noite que jamais será esquecida.


Uma pena não terem feito uma caipirinha!

leave's eye no brasil

Atrocity - setlist:

  1. Desecration of God
  2. Death by Metal
  3. Fire Ignites
  4. Fatal Step
  5. Necropolis
  6. Spell Of Blood
  7. Faces From Beyond
  8. Bleeding for Blasphemy
  9. Shadowtaker
  10. Reich of Phenomena

Arkona - setlist (carece de confirmação pois não havia setlist no palco):

  1. Kob’
  2. Ydi
  3. Na strazhe novyh let
  4. Yav
  5. Khram
  6. Goi, Rode, Goi!
  7. Zakliatie
  8. Zimushka

Leave's Eye - setlist:

  1. Chain of the Golden Horn
  2. Hammer of the Gods
  3. Across the Sea
  4. Serpents and Dragons
  5. Edge of Steel
  6. Who Wants to Live Forever
  7. Sign of the Dragonhead
  8. Song of Darkness
  9. Realm of Dark Waves
  10. My Destiny
  11. Swords in Rock
  12. Hell to the Heavens
  13. Farewell Proud Men
  14. Forged by Fire

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